O que ensina o latim...

"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

sábado, 7 de dezembro de 2013

Ensinamentos: Doença Holandesa

Contextualizando um pouco o tema, a questão prende-se com o início da exploração de um qualquer recurso natural que atinge um peso substancial nas exportações de uma economia. Naturalmente, se este recurso for abundante e rentável, haverá condições para a entrada de mais empresas no mercado.

Assim, a Doença Holandesa consiste no problema criado por um grande fluxo de entrada de moeda estrangeira por via do elevado fluxo exportador criado pela descoberta deste recurso. Este problema pode trazer duas graves consequências para a economia:
i) A entrada de moeda estrangeira levará a uma apreciação da moeda nacional, o que implica uma perda de competitividade do país. Isto significa que as importações se tornam mais baratas para os importadores nacionais e as exportações mais caras para os importadores externos.
ii) O embaratecimento das importações leva a que se substitua produção nacional (industrial) por produtos importados, o que a médio prazo mina a actividade industrial da economia.

O nome de "Doença Holandesa" prende-se com a escalada dos preços do gás na Holanda, em 1960, o que levou à apreciação do Florim e a um aumento das importações, diminuindo a competitividade da indústria holandesa nas décadas seguintes. Este aumento de preços derivou da descoberta de reservas de gás natural no Mar do Norte.


Gráfico 1: Apreciação da moeda derivada de um aumento de exportações (DEM/NLG).

Gráfico 2: Alteração do peso dos sectores extractivo (petróleo e gás natural) e industrial.

Assim, os governos têm alguns mecanismos para tentar solucionar esta questão:
i) Imposição de quotas à exportação deste produto, limitando a entrada anual de divisas por esta via e garantindo um retorno mais prolongado para as empresas exportadoras;
ii) Restrição do número de empresas no mercado, na tentativa de limitar a oferta do recurso natural, tendo em vista os mesmos resultados de i.
iii) Constituição de Fundos Soberanos, investindo internamente o excesso de moeda estrangeira que tenham, impedindo a desindustrialização da economia e o aumento desmesurado das importações.

NOTA: Os gráficos foram retirados de http://campelodemagalhaes.wordpress.com/2012/06/28/a-doenca-holandesa/, tratando-se do caso original holandês.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Notas (in)constitucionais

Está na moda e fica bem defender a Constituição. No entanto, desconfio seriamente que metade das pessoas que hoje o fazem não faz a mínima noção do que lá está escrito, assumindo que sabem que la já existia antes de 2011 e que entendem para o que ela serve (o que também não é líquido)...
A Constituição é então a lei fundamental do país. Consagra, em termos genéricos, os princípios pelos quais a sociedade se deve reger, na esfera política, económica e social, bem como os direitos, liberdades e garantias de que os cidadãos se podem valer. Por ser a lei maior, nenhuma outra lei interna pode ir contra o que ela dispõe, salvo se for para transpor para o ordenamento jurídico português leis e acordos internacionais, desde que o país haja sido envolvido no processo de aprovação destas mesmas. Há, contudo, duas possibilidades de suspensão da panóplia de liberdades e garantias que a Constituição contempla: o caso de Portugal entrar em conflitos armados ou se for decretado o estado de sítio.

A CRP foi aprovada em 1975. Desde então, como é natural, teve de sofrer actualizações/revisões. Mas nem sequer essa necessidade é assumida por muito boa (e má) gente, que julga que, porque a CRP é um dos símbolos de "Abril", deve permanecer intacta (provavelmente até ao fim dos seus dias, que origine o fim dos dias do país...). Pergunte-se ao vasto leque de sindicalistas, que vão para as "manifs" distribuir o documento ao povo, se concordam com as revisões constitucionais levadas a cabo e concluir-se-á que não (embora não saibam dizer porquê...).

Pois bem, esta Constituição que está óptima e não precisa de ser revista diz-nos, logo no seu preâmbulo (coisa que, embora não sirva para muito, é simbólica do que se lhe segue), que Portugal deve "abrir caminho para uma sociedade socialista" (ver imagem). Desconfio que a continuação "no respeito pela vontade do povo português" tenha sido uma exigência de última da hora dos partidos não-comunistas... Todavia, tenho a reconhecer que naqueles anos (74, 75, 76, ...), até Freitas do Amaral discursava por uma sociedade sem classes, sem ter a exacta noção do que andava a dizer (acho).


Logo a seguir, no corpo do documento, temos os inequívocos artigos 1º e 2º, que dizem que Portugal é uma nação democrática e soberana. Democrática até admito que seja, embora para mim esse seja um qualificativo mais vasto do que eleições de 4 em 4 anos, nas quais em média se abstêm de votar 40% dos cidadãos eleitores.
Quanto à "soberania", não será preciso dizer muito. É verdade que o país tem 8 séculos de história, mantém as suas fronteiras mais ou menos inalteradas desde essa altura e aparentemente os seus órgãos de soberania exercem livremente funções. Digo aparentemente por óbvias razões. Em primeiro lugar, porque o país, mesmo em estado normal de funcionamento ("sem crise"), não poderia dispor livremente sobre vários domínios económicos e sociais, já que algumas dessas competências estão nas mãos das instâncias europeias (e de outros países, por arrasto). Em segundo, se é líquido que Portugal não está em "estado normal de funcionamento" (dado o período de assistência da troika), dever-se-ia considerar que a pátria de soberana tem muito pouco nesta altura.
Ou seja, para ficar actual e real, nesses artigos deveria constar qualquer coisa como "Portugal é uma nação 70% democrática, e 20% soberana até Junho de 2014 (se não for mais tarde), sendo-o 40% daí em diante".
Esta é a Constituição que "garante" um serviço nacional de saúde "universal" e "tendencialmente gratuito" (art. 64º, n. 2, al. a)). Universal é lógico que tem de ser, mas dentro desse universo nem todos têm a mesma capacidade contributiva, pelo que aos que mais têm deveria ser pedido um contributo equivalente ao que custa prestar esse serviço (além dos impostos). Mas não! Já para introduzir taxas moderadoras foi uma guerra e outra maior seria se o "tendencialmente gratuito" passasse a "comparticipado de acordo com a capacidade económica dos utentes". O modelo de financiamento actual do SNS apenas garante que este ficará "tendencialmente falido" a médio-prazo.
Entre outras coisas, esta é a Constituição que permite ao "povo" empobrecer através da inflação, não aceitando, em alternativa, planos de austeridade. Se assim não fosse, o Portugal do pós-25/4 até 1985 seria declarado inconstitucional - período em que se chegou a registar 29% de inflação anual (ver gráfico).
Fonte: PORDATA
Tal como escrito acima, esta é a Constituição que ignora o facto de o país não ter todos os instrumentos de política económica que lhe permitam ajustar-se à conjuntura. O caso mais gritante é o da política monetária e cambial, hoje sob alçada do BCE. Era costume (tal como em qualquer outro país) o BdP variar a taxa de juro, o volume de moeda e a taxa de câmbio para fazer face ao ciclo (nível dos preços, finanças públicas ou nível de produto). Hoje, nada disto está nas mãos das autoridades nacionais e a única maneira possível de ajustar as coisas é pelo lado orçamental e fiscal (e mesmo aqui a Alemanha pretende impedir que os países façam o que lhes bem quer e apetece). O resultado é a mais elevada carga tributária da Europa.

Esta é a Constituição que mais separa os eleitores dos eleitos, que permite aos partidos serem "compartimentos estanques", fechados à mudança e aos cidadãos que não fazem da política uma missa ou um jogo de futebol. Ela impede, por exemplo, que um grupo de cidadãos independentes se candidate à "casa do povo" sem que tenham de formar um partido e é a responsável pelo facto de, legislatura-após-legislatura, os portugueses não conhecerem nem 1/10 dos deputados daquela casa...
Esta é a Constituição-maravilha que torna a única figura do Estado eleita por sufrágio universal e directo num actor "tendencialmente irrelevante". A velha história de que o Presidente da República tem o "poder da palavra" é um embuste. Bem podemos agradecer esta obra-prima ao grande e honroso Mário Soares que, à pala duma quezília pessoal (como é seu hábito), com a conivência de Mota Pinto, decidiu em 1982 tal reforma anti-Ramalho Eanes, retirando ao PR a possibilidade de demitir o governo (sem dissolver a AR) e formar executivos de iniciativa presidencial. Fórmula essa que hoje daria um jeitão! É em parte esse o sistema que vigora em França, onde o Presidente pode, se assim entender, presidir ao Conselho de Ministros e o Primeiro-Ministro é figura secundária.

Com tudo isto e muito mais, quem acha que a CRP não precisa de uma reforma, ou não vive em Portugal, ou não está a ver bem as coisas.
Posto isto, adapta-se bem uma célebre frase de outros tempos: A CRP tem coisas úteis e coisas interessantes. Pena é que as coisas úteis não sejam interessantes e as interessantes não sejam úteis!