Está na moda e fica bem defender
a Constituição. No entanto, desconfio seriamente que metade das pessoas que hoje o fazem não faz a mínima noção do que lá está escrito, assumindo que sabem que la já
existia antes de 2011 e que entendem para o que ela serve (o que também não é
líquido)...
A
Constituição é então a lei fundamental do país. Consagra, em termos genéricos, os
princípios pelos quais a sociedade se deve reger, na esfera política, económica
e social, bem como os direitos, liberdades e garantias de que os cidadãos se podem
valer. Por ser a lei maior, nenhuma outra lei interna pode ir contra o que
ela dispõe, salvo se for para transpor para o ordenamento jurídico português leis e acordos
internacionais, desde que o país haja sido envolvido no processo de
aprovação destas mesmas. Há, contudo, duas possibilidades de suspensão
da panóplia de liberdades e garantias que a Constituição contempla: o caso de Portugal entrar em conflitos
armados ou se for decretado o estado de sítio.
A CRP foi aprovada em 1975. Desde
então, como é natural, teve de sofrer actualizações/revisões. Mas nem sequer essa
necessidade é assumida por muito boa (e má) gente, que julga que, porque a CRP é um
dos símbolos de "Abril", deve permanecer intacta (provavelmente
até ao fim dos seus dias, que origine o fim dos dias do país...). Pergunte-se ao vasto
leque de sindicalistas, que vão para as "manifs" distribuir o documento ao povo,
se concordam com as revisões constitucionais levadas a cabo e concluir-se-á que
não (embora não saibam dizer porquê...).
Pois bem, esta Constituição que
está óptima e não precisa de ser revista diz-nos, logo no seu preâmbulo (coisa
que, embora não sirva para muito, é simbólica do que se lhe segue), que Portugal
deve "abrir caminho para uma sociedade socialista" (ver imagem). Desconfio que a continuação "no respeito pela vontade do povo português" tenha sido uma exigência de última da hora dos partidos não-comunistas... Todavia, tenho a reconhecer que
naqueles anos (74, 75, 76, ...), até Freitas do Amaral discursava por uma sociedade sem classes, sem ter a exacta noção do que andava a dizer (acho).
Logo a seguir, no corpo do
documento, temos os inequívocos artigos 1º e 2º, que dizem que Portugal é uma nação
democrática e soberana. Democrática até admito que seja, embora para mim esse
seja um qualificativo mais vasto do que eleições de 4 em 4 anos, nas quais em
média se abstêm de votar 40% dos cidadãos eleitores.
Quanto à "soberania",
não será preciso dizer muito. É verdade que o país tem 8 séculos de história,
mantém as suas fronteiras mais ou menos inalteradas desde essa altura e aparentemente os seus
órgãos de soberania exercem livremente funções. Digo aparentemente por óbvias
razões. Em primeiro lugar, porque o país, mesmo em estado normal de
funcionamento ("sem crise"), não poderia dispor livremente sobre vários domínios económicos
e sociais, já que algumas dessas competências estão nas mãos das instâncias
europeias (e de outros países, por arrasto). Em segundo, se é líquido que
Portugal não está em "estado normal de funcionamento" (dado o período
de assistência da troika), dever-se-ia considerar que a pátria
de soberana tem muito pouco nesta altura.
Ou seja, para ficar actual e
real, nesses artigos deveria constar qualquer coisa como "Portugal é uma
nação 70% democrática, e 20% soberana até Junho de 2014 (se não for mais tarde),
sendo-o 40% daí em diante".
Esta é a Constituição que
"garante" um serviço nacional de saúde "universal" e "tendencialmente gratuito" (art. 64º, n. 2, al. a)). Universal é lógico que tem de ser, mas dentro
desse universo nem todos têm a mesma capacidade contributiva, pelo que aos que mais
têm deveria ser pedido um contributo equivalente ao que custa prestar esse serviço (além dos impostos). Mas não! Já para introduzir taxas moderadoras foi
uma guerra e outra maior seria se o "tendencialmente gratuito"
passasse a "comparticipado de acordo com a capacidade económica dos
utentes". O modelo de financiamento actual do SNS apenas garante que este ficará "tendencialmente falido" a médio-prazo.
Entre outras coisas, esta é a
Constituição que permite ao "povo" empobrecer através da inflação,
não aceitando, em alternativa, planos de austeridade. Se
assim não fosse, o Portugal do pós-25/4 até 1985 seria declarado inconstitucional -
período em que se chegou a registar 29% de inflação anual (ver gráfico).
Tal como escrito acima, esta é a
Constituição que ignora o facto de o país não ter todos os instrumentos de
política económica que lhe permitam ajustar-se à conjuntura. O caso mais
gritante é o da política monetária e cambial, hoje sob alçada do BCE. Era
costume (tal como em qualquer outro país) o BdP variar a taxa de juro, o
volume de moeda e a taxa de câmbio para fazer face ao ciclo (nível dos preços, finanças públicas ou nível de produto). Hoje, nada disto está nas mãos das autoridades
nacionais e a única maneira possível de ajustar as coisas é pelo lado
orçamental e fiscal (e mesmo aqui a Alemanha pretende impedir que os países
façam o que lhes bem quer e apetece). O resultado é a mais elevada carga tributária da Europa.
Fonte: PORDATA |
Esta é a Constituição que mais
separa os eleitores dos eleitos, que permite aos partidos serem "compartimentos
estanques", fechados à mudança e aos cidadãos que não fazem da política uma missa ou um jogo de futebol. Ela impede, por exemplo, que um grupo de cidadãos
independentes se candidate à "casa do povo" sem que tenham de formar um partido e é a responsável pelo
facto de, legislatura-após-legislatura, os portugueses não conhecerem nem 1/10 dos
deputados daquela casa...
Esta é a Constituição-maravilha
que torna a única figura do Estado eleita por sufrágio universal e
directo num actor "tendencialmente irrelevante". A velha história de
que o Presidente da República tem o "poder da palavra" é um embuste.
Bem podemos agradecer esta obra-prima ao grande e honroso Mário Soares que, à
pala duma quezília pessoal (como é seu hábito), com a conivência de Mota Pinto, decidiu em 1982 tal reforma anti-Ramalho Eanes, retirando ao PR a possibilidade de demitir
o governo (sem dissolver a AR) e formar executivos de iniciativa presidencial. Fórmula essa que
hoje daria um jeitão! É em parte esse o sistema que vigora em França, onde o
Presidente pode, se assim entender, presidir ao Conselho de Ministros e o
Primeiro-Ministro é figura secundária.
Com tudo isto e muito mais, quem
acha que a CRP não precisa de uma reforma, ou não vive em Portugal, ou não está a ver bem as coisas.
Posto isto, adapta-se bem uma célebre frase de outros tempos: A CRP tem coisas úteis
e coisas interessantes. Pena é que as coisas úteis não sejam interessantes e
as interessantes não sejam úteis!
A teoria acima exposta é mais ou menos esta: os ideiais e os princípios elevados expressos na Constituição são desmentidos e postos em causa, diariamente, pela miserável e porca realidade, logo, numa lógica utilitarista, há que os adequar à cruel e dura realidade.
ResponderEliminarConcordo com a parte relativa à separação dos eleitos dos eleitores e ao fechamento dos partidos.