O que ensina o latim...

"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Portuguesing


O Mundo de hoje caracteriza-se pela globalização a muitos níveis, incluindo o cultural. Do Brasil à Coreia (do Sul), quando não traduzido, ouvem-se as mesmas músicas, vêem-se as mesmas séries e filmes e comem-se até coisas parecidas. Em geral, vindos dos EUA. Já todos sabemos desta conversa. Mas, reforço, a necessidade de hoje toda a gente comunicar em inglês fez com que as outras línguas estejam, como se diz no mundo dos negócios, em processo de liquidação!
(Nisso, os franceses e os espanhóis, mal ou bem, mantêm uma marca própria, seja por convicção ou nabice para as línguas…)
Veio-me este pensamento à cabeça, ao assistir às sessões da comissão parlamentar de inquérito ao caso BES/GES. Em particular, ao longo e inconclusivo depoimento de Ricardo Salgado (a nova designada VDT – Vítima Disto Tudo).
Fui logo repescar um vídeo que traz Zeinal Bava para as mesmas tristezas, também numa comissão de inquérito, não apenas pelo “portuguesing”, mas igualmente pelo abismo de reputação em que caiu, tanto ou quanto idêntico ao de Salgado (e por este último causado, já agora).



Parece que não é só chic, mas obrigatório, recorrer ao jargão empresarial. Se queremos ser bem-sucedidos e mostrarmo-nos na crista da onda (ou no mainstream), não podemos acabar uma frase sem meter um palavrão lá para o meio, como seja: advisory, assets, assumptions, benchmark, board, brainstorming, brand awareness, budget, business model, cash-flows, case study, CEO, CFO, chairman, coaching, core business, deadline, downsizing, EBITDA, empowerment, equity, feedback, follow-up, franchising, governance, insights, joint ventures, know-how, M&A, mainstream, market share, mentoring, network, outsourcing, pricing, procurement, project finance, sales, skills, stakeholders, start-up, stock options, upgrade ou workshop.


Concluindo, entusiasmemo-nos com os novos tempos e as oportunidades que eles oferecem, sim, mas mantenhamos uma certa identidade quando manifestarmos esse entusiasmo da boca para fora…
PS: E, por favor, não, não vamos buscar os maus exemplos vindos das altas figuras da Nação…


sábado, 29 de novembro de 2014

Atentado ao pudor



Os dias que correm trouxeram-nos novidades quentes. Investigações por todos os lados, a banqueiros, políticos, polícias, profissionais de saúde, grandes empresas.
Contudo, é o processo “Marquês”, cujo principal alvo é um ex-primeiro-ministro, que centra a agenda mediática.
Acontece que, neste vai-e-vem entre Política e Justiça, com toda a gente a dizer que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, mas no fundo querendo misturar as duas numa só, os media têm sido usados como arma de arremesso e pressão, seja para um lado, ou para o outro. A este respeito, assista-se às declarações absolutamente escandalosas de Mário Soares, a quem tudo parece permitido.

No meio disto, jogam-se interesses de várias índoles, sem que o essencial seja lembrado: a gravidade dos factos envolvidos e o que eles significam num regime em descrédito e falência financeira e moral!

Na passada quinta-feira, o tal senhor que foi “caçado” no aeroporto para ser levado a prestar explicações a Carlos Alexandre (juiz de instrução a quem presto a minha mais profunda consideração) veio usar as mesmas técnicas de sempre para se “defender”. Como se a que tem de fazer na barra dos tribunais fosse um pormenor.

Carlos Alexandre: juiz discreto mas pelos vistos eficaz
Sócrates é um atentado à sanidade, lucidez, dignidade e honra de qualquer ser-humano. Já nem falo da tolerância e espírito democrático, que há muito não lhe são reconhecidos.
Estando atrás de grades, haja recato!
Vejamos.

«Há cinco dias “fora do mundo”, tomo agora consciência de que (...) as “circunstâncias" devidamente seleccionadas contra mim pela acusação ocupam os jornais e as televisões. Essas “fugas” de informação são crime».
Repare-se como crime são as fugas de informação (que, de facto, não deixam de o ser, mas sempre foram usadas como meio de informação e contra-informação, na Politica e na Justiça; Sócrates era perito nesse jogo) e não a “fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e corrupção”, como lhe acusa o Ministério Público!
E, depois, «as "circunstâncias" devidamente seleccionadas contra mim pela acusação»?! Mas ele estava à espera de quê?! De uma investigação inoperante, à moda de Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento, que impediram que fosse apanhado antes e que ajudaram a que, hoje, Sócrates seja acusado por muito menos do que deveria ser (Face Oculta, por eg)?!

«Não espero que os jornais (…) denunciem o crime e o quanto ele põe em causa os ditames da lealdade processual e os princípios do processo justo. Por isso, será em legítima defesa que irei (…) desmentir as falsidades lançadas sobre mim e responsabilizar os que as engendraram».
Este monólogo é surreal! Já nem me refiro à lengalenga do “é inocente até provem contrário”, porque esse princípio apenas à Justiça cabe respeitar, não na vida dos cafés, conversas entre amigos, discussões políticas, académicas e por aí fora. Se não houvesse “presunção de culpa” neste caso (e não de inocência), José Sócrates não estaria hoje em prisão preventiva!
Como referiu Nuno Garoupa, no Expresso, «A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político, independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a justiça não são a mesma coisa. Assim como a justiça deve fazer o seu julgamento sem interferência da política, a política (…) deve fazer o seu julgamento. O maior disparate que existiu em Portugal nos últimos anos (…) é tentar que o julgamento político (…) esteja sujeito aos mesmos critérios do julgamento penal. (…) A presunção de inocência e o 'in dubio pro reo' são princípios jurídicos, não são, não devem ser e não podem ser princípios políticos».
No mesmo sentido, João Miguel Tavares: «Da mesma forma que os gatos têm sete vidas, eu acho excelente que um cidadão tenha sete presunções de inocência. O problema de José Sócrates (…) é que já as gastou. Sócrates foi presumível inocente na construção de casas na Guarda, (…) na licenciatura da Independente, (…) na Cova da Beira, (…) no Freeport, (…) na casa da Braamcamp, (…) no assalto ao BCP, (…) na tentativa de controlar a TVI, (…) no pequeno-almoço pago a Luís Figo. Mal começou a ser escrutinado, a presunção de inocência tornou-se uma segunda pele».
E, por outro lado, repare-se como Sócrates não resiste àquela sua velha ambição de controlar os meios de comunicação social. Paradoxalmente, essa é a acusação que faz à “acusação”...

«A minha detenção para interrogatório foi um abuso e o espectáculo montado em torno dela uma infâmia; as imputações que me são dirigidas são absurdas, injustas e infundamentadas; a decisão de me colocar em prisão preventiva é injustificada e constitui uma humilhação gratuita».
Toda esta adjectivação não traz nada de novo à defesa do acusado. Não adianta dizer-se que se está inocente sem antes demonstrá-lo nas instâncias próprias. E essa deveria ser a prioridade de Sócrates. Serão os tribunais a decidir, não a sensibilidade especial da opinião pública para tanta vitimização numa frase só.
Mais ainda, o que tem vindo a lume sobre o caso (aqui, aqui ou aqui, só para dar alguns exemplos) não aponta de maneira nenhuma para aquilo que o detido reivindica.

«Aqui está toda uma lição de vida: aqui está o verdadeiro poder – de prender e de libertar. Mas em contrapartida, não raro a prepotência atraiçoa o prepotente».
Sócrates sabe-o bem por experiência própria! Quanto a prepotência, estamos conversados…

«Não tenho dúvidas que este caso tem também contornos políticos e sensibilizam-me as manifestações de solidariedade de tantos camaradas e amigos».
Este caso, por ter implicações políticas, não pode ser tratado como um outro qualquer. A este respeito, cito o director do jornal i, Luís Rosa: «O mais extraordinário em toda a argumentação utilizada por boa parte dos comentadores de esquerda é a transformação da detenção de José Sócrates numa violação do Estado de Direito. (…) Esta extraordinária inversão das prioridades (como se o juiz ou o procurador fosse mais perigoso que o arguido) pretende, não tenhamos dúvidas, desvalorizar e descredibilizar os indícios que foram recolhidos contra Sócrates».
Para além disso, o senhor dito engenheiro tem pouco que se queixar, tal como bem lembra Vasco Pulido Valente: «Se o tratam mal agora, seria bom pensar na gente que ele tratou mal quando podia: adversários, serventes, jornalistas, toda a gente que tinha de o aturar por necessidade ou convicção. Sócrates florescia no meio do que foi a sufocação do seu mandato».

Nada disto deve espantar. Para quem escreve há muito sobre a sua forma de ser (e parecer), estes comportamentos narcísico-arrogantes são nem mais nem menos coerentes com a actuação do senhor enquanto primeiro-ministro de 2005 a 2011. E, agora, batemos de frente com as razões pelas quais medidas, de aparência ideológica, foram, naquela altura, umas levadas adiante, outras impedidas. Prova mais clara não pode haver do que a rejeição da lei contra o enriquecimento ilícito. Muitas outras estarão por explicar.
Deixámo-lo lá tempo demais. Estamos hoje, inequivocamente, a pagar por isso. Mas, pelo menos, que se faça justiça e não sejamos os únicos a fazê-lo!

PS: É indispensável consultar este apontamento humorístico sobre o tema. O caos também floresce a criatividade.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Preso por ter cão e preso por não o ter




Como é sabido, realizam-se no próximo dia 28 de Setembro as primárias que elegerão o “candidato a primeiro-ministro”, por parte do Partido Socialista, às Legislativas de 2015.
Não venho para aqui discutir a campanha, as “propostas”, o “messianismo” dos candidatos, as “traições”, os “debates”, o falatório, as birras, os “apoios”, as federações e essa estirpe de coisas que entretém os noticiários e que, no fundo, não são nada de novo nesta democracia com pouca alternativa e muita alternância. Venho, sim, como militante que sou da intervenção cidadã e da independência de raciocínio, deixar um comentário às críticas que o processo tem merecido por parte de algumas pessoas (como foi o caso de António Barreto).

A maior crítica apontada às eleições primárias é a de que elas representam a incapacidade das estruturas internas dos partidos de decidir o melhor para o país. Mas, durante anos a fio, estes mesmos partidos assistiram impávidos à sua própria descredibilização, exactamente à conta da excessiva “capacidade” em proceder a essas escolhas, ignorando sem apelo nem agravo (como ainda hoje se ignora) o contributo de movimentos de cidadãos independentes, petições e iniciativas afins. Tendo, também e evidentemente, outras causas, este monopólio de decisão dos partidos (internamente e na Assembleia da República) resultou no que hoje se vê como o maior alheamento por parte dos cidadãos que há memória desde 1974.

António Barreto diz que esta iniciativa «é o mais forte ataque à democracia portuguesa». Bom, não consta que os Estados Unidos da América, onde a eleição presidencial é precedida de primárias no Partido Democrata e no Partido Republicano, seja uma democracia fraca. Muito pelo contrário. Não haverá provavelmente no Mundo (sem conhecê-las a todas) democracia em que os cidadãos se mobilizem tanto como naquela, seja em causas políticas ou humanitárias.
No entanto, há uma crítica de Barreto que eu partilho e que entronca num imbróglio jurídico por resolver. Nestas eleições, está em jogo o “candidato a primeiro-ministro” e não o secretário-geral do PS. Ora, sucede-se que, na Constituição Portuguesa, as eleições legislativas não elegem o primeiro-ministro. Elegem deputados para a AR, por representação proporcional, em listas distritais apresentadas pelos partidos concorrentes. Dados os resultados eleitorais, os deputados eleitos (ou melhor, os partidos por eles) indicam ao Presidente da República uma pessoa (normalmente, do partido mais votado) que o indigita, ou não, para formar governo.
Ou seja, na prática, estas primárias não servem de nada. Dependem sempre de uma “declaração de princípio” por parte do líder do PS: primeiro passo, ceder o lugar (estatutariamente, sabe-se lá como...) ao vencedor dessas eleições (que pode ser o anterior ou um novo) e, segundo passo, comprometer o partido a indicar o vencedor dessas primárias para formar governo (caso o PS seja o mais votado nas legislativas). Tirando este pequeno grande pormenor, esta abertura do PS só pode ser benéfica para a democracia.

Não se pode, pois, criticar os partidos por nada fazerem para inverter o descrédito em que caíram e, ao mesmo tempo, contrariar as suas iniciativas para se abrirem à “sociedade civil” e a outros movimentos!

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A Verdade é uma Arte

Para marcar o meu regresso ao mundo da palavra escrita, partilho convosco uma verdade que tanto me deu de rir como de pensar neste interlúdio. Vai valer a pena descobrir as verdades desta verdade.

Enquanto passeava pelos canais de televisão, caio num programa que reuniu um painel de Presidentes de Câmara para comentar os quarenta anos do 25 de Abril. Comentado isto e aqueloutro, o assunto veio para as Câmaras e as suas dívidas. E o que mais me recordo é de alguém disparar da boca para fora qualquer coisa como:
«As autarquias não contribuem para o défice. Aliás, até damos lucro ao Estado.»
Dizer que as autarquias "não contribuem para o défice [do Estado]" requer uma manobra contabilística tão boa como a do Pingo Doce ir pagar os impostos à Holanda. Brinco, mas a verdade é que o superavit das autarquias não passa de uma ilusão contabilística.

Se olharmos para as autarquias como entidades individuais, é bem provável que algumas delas até terminem o ano com um saldo contabilístico positivo. Contudo, sendo as autarquias parte do Estado, consolidando as contas, elas são - quase de certeza na sua totalidade - deficitárias.

Porquê a diferença? Quando vemos as contas não estão consolidadas das autarquias, as transferências do Estado surgem como uma Receita nas contas das autarquias. Quando consolidamos as contas para o Estado como um todo, o dinheiro que vem de um lado do Estado para o outro lado do Estado não é contabilizado, porque no fundo trata-se do mesmo organismo.

Vejamos então os números:

Receitas e Despesas da Administração Local*

Fonte: Relatório do OE14201220132014
Receita Efectiva
Receita fiscal222123372530
da qual:IMI123013591530
IMT386367385
Transferências376337953516
das quais:Das Adm. Públicas25514572894
União Europeia7491641491
Outra165616411351
Subtotal764077737397
Despesa Efectiva
CorrentePessoal224124192241
Outra269130682563
Capital196322331725
Subtotal689577206529
Saldo Global74553868
Saldo s/ transferências-1806-404-2026
*Além dos municípios, inclui as freguesias.

O saldo global confirma a verdade proferida pelo tal Presidente de Câmara, em que as autarquias geram "lucro para o Estado". Retirando as transferências do Estado para o Estado, vemos que as autarquias têm tanto de lucro como a CP.

Isto da verdade é só truques e há para todos os gostos. Mas em contexto, só uma é de interesse. E neste caso, para saber que subsector do Estado sustem o outro, a verdade é esta: as autarquias dependem da Administração Central.

Como nota final, tenho a salientar não que o saldo da administração local não me incomoda. Como cidadão, apenas desejo que o Estado exerça as funções que a sociedade lhe exige nos melhores modos possíveis. Se nesta atribuição de tarefas, acontece que a Administração Local exerce as suas actividades com um défice ou superavit é de pouca importância. O que realmente importa é que se trabalhe com eficiência e que o Estado como um todo tenha finanças sustentáveis.