O que ensina o latim...

"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

sábado, 29 de novembro de 2014

Atentado ao pudor



Os dias que correm trouxeram-nos novidades quentes. Investigações por todos os lados, a banqueiros, políticos, polícias, profissionais de saúde, grandes empresas.
Contudo, é o processo “Marquês”, cujo principal alvo é um ex-primeiro-ministro, que centra a agenda mediática.
Acontece que, neste vai-e-vem entre Política e Justiça, com toda a gente a dizer que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, mas no fundo querendo misturar as duas numa só, os media têm sido usados como arma de arremesso e pressão, seja para um lado, ou para o outro. A este respeito, assista-se às declarações absolutamente escandalosas de Mário Soares, a quem tudo parece permitido.

No meio disto, jogam-se interesses de várias índoles, sem que o essencial seja lembrado: a gravidade dos factos envolvidos e o que eles significam num regime em descrédito e falência financeira e moral!

Na passada quinta-feira, o tal senhor que foi “caçado” no aeroporto para ser levado a prestar explicações a Carlos Alexandre (juiz de instrução a quem presto a minha mais profunda consideração) veio usar as mesmas técnicas de sempre para se “defender”. Como se a que tem de fazer na barra dos tribunais fosse um pormenor.

Carlos Alexandre: juiz discreto mas pelos vistos eficaz
Sócrates é um atentado à sanidade, lucidez, dignidade e honra de qualquer ser-humano. Já nem falo da tolerância e espírito democrático, que há muito não lhe são reconhecidos.
Estando atrás de grades, haja recato!
Vejamos.

«Há cinco dias “fora do mundo”, tomo agora consciência de que (...) as “circunstâncias" devidamente seleccionadas contra mim pela acusação ocupam os jornais e as televisões. Essas “fugas” de informação são crime».
Repare-se como crime são as fugas de informação (que, de facto, não deixam de o ser, mas sempre foram usadas como meio de informação e contra-informação, na Politica e na Justiça; Sócrates era perito nesse jogo) e não a “fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e corrupção”, como lhe acusa o Ministério Público!
E, depois, «as "circunstâncias" devidamente seleccionadas contra mim pela acusação»?! Mas ele estava à espera de quê?! De uma investigação inoperante, à moda de Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento, que impediram que fosse apanhado antes e que ajudaram a que, hoje, Sócrates seja acusado por muito menos do que deveria ser (Face Oculta, por eg)?!

«Não espero que os jornais (…) denunciem o crime e o quanto ele põe em causa os ditames da lealdade processual e os princípios do processo justo. Por isso, será em legítima defesa que irei (…) desmentir as falsidades lançadas sobre mim e responsabilizar os que as engendraram».
Este monólogo é surreal! Já nem me refiro à lengalenga do “é inocente até provem contrário”, porque esse princípio apenas à Justiça cabe respeitar, não na vida dos cafés, conversas entre amigos, discussões políticas, académicas e por aí fora. Se não houvesse “presunção de culpa” neste caso (e não de inocência), José Sócrates não estaria hoje em prisão preventiva!
Como referiu Nuno Garoupa, no Expresso, «A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político, independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a justiça não são a mesma coisa. Assim como a justiça deve fazer o seu julgamento sem interferência da política, a política (…) deve fazer o seu julgamento. O maior disparate que existiu em Portugal nos últimos anos (…) é tentar que o julgamento político (…) esteja sujeito aos mesmos critérios do julgamento penal. (…) A presunção de inocência e o 'in dubio pro reo' são princípios jurídicos, não são, não devem ser e não podem ser princípios políticos».
No mesmo sentido, João Miguel Tavares: «Da mesma forma que os gatos têm sete vidas, eu acho excelente que um cidadão tenha sete presunções de inocência. O problema de José Sócrates (…) é que já as gastou. Sócrates foi presumível inocente na construção de casas na Guarda, (…) na licenciatura da Independente, (…) na Cova da Beira, (…) no Freeport, (…) na casa da Braamcamp, (…) no assalto ao BCP, (…) na tentativa de controlar a TVI, (…) no pequeno-almoço pago a Luís Figo. Mal começou a ser escrutinado, a presunção de inocência tornou-se uma segunda pele».
E, por outro lado, repare-se como Sócrates não resiste àquela sua velha ambição de controlar os meios de comunicação social. Paradoxalmente, essa é a acusação que faz à “acusação”...

«A minha detenção para interrogatório foi um abuso e o espectáculo montado em torno dela uma infâmia; as imputações que me são dirigidas são absurdas, injustas e infundamentadas; a decisão de me colocar em prisão preventiva é injustificada e constitui uma humilhação gratuita».
Toda esta adjectivação não traz nada de novo à defesa do acusado. Não adianta dizer-se que se está inocente sem antes demonstrá-lo nas instâncias próprias. E essa deveria ser a prioridade de Sócrates. Serão os tribunais a decidir, não a sensibilidade especial da opinião pública para tanta vitimização numa frase só.
Mais ainda, o que tem vindo a lume sobre o caso (aqui, aqui ou aqui, só para dar alguns exemplos) não aponta de maneira nenhuma para aquilo que o detido reivindica.

«Aqui está toda uma lição de vida: aqui está o verdadeiro poder – de prender e de libertar. Mas em contrapartida, não raro a prepotência atraiçoa o prepotente».
Sócrates sabe-o bem por experiência própria! Quanto a prepotência, estamos conversados…

«Não tenho dúvidas que este caso tem também contornos políticos e sensibilizam-me as manifestações de solidariedade de tantos camaradas e amigos».
Este caso, por ter implicações políticas, não pode ser tratado como um outro qualquer. A este respeito, cito o director do jornal i, Luís Rosa: «O mais extraordinário em toda a argumentação utilizada por boa parte dos comentadores de esquerda é a transformação da detenção de José Sócrates numa violação do Estado de Direito. (…) Esta extraordinária inversão das prioridades (como se o juiz ou o procurador fosse mais perigoso que o arguido) pretende, não tenhamos dúvidas, desvalorizar e descredibilizar os indícios que foram recolhidos contra Sócrates».
Para além disso, o senhor dito engenheiro tem pouco que se queixar, tal como bem lembra Vasco Pulido Valente: «Se o tratam mal agora, seria bom pensar na gente que ele tratou mal quando podia: adversários, serventes, jornalistas, toda a gente que tinha de o aturar por necessidade ou convicção. Sócrates florescia no meio do que foi a sufocação do seu mandato».

Nada disto deve espantar. Para quem escreve há muito sobre a sua forma de ser (e parecer), estes comportamentos narcísico-arrogantes são nem mais nem menos coerentes com a actuação do senhor enquanto primeiro-ministro de 2005 a 2011. E, agora, batemos de frente com as razões pelas quais medidas, de aparência ideológica, foram, naquela altura, umas levadas adiante, outras impedidas. Prova mais clara não pode haver do que a rejeição da lei contra o enriquecimento ilícito. Muitas outras estarão por explicar.
Deixámo-lo lá tempo demais. Estamos hoje, inequivocamente, a pagar por isso. Mas, pelo menos, que se faça justiça e não sejamos os únicos a fazê-lo!

PS: É indispensável consultar este apontamento humorístico sobre o tema. O caos também floresce a criatividade.