O que ensina o latim...

"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Montesquiófilo

Uma das claras implicações da última decisão do Tribunal Constitucional sobre normas do OE'14 prende-se com a (falta de) separação de poderes, tão necessária em Democracia.
Por um lado, trata-se de perceber até que ponto o TC, baseando-se em princípios gerais, ao decidir-se pela inconstitucionalidade de normas de conteúdo marcadamente político, extravasa as suas competências para as que apenas são da iniciativa do Governo (com ou sem reserva legislativa absoluta na área).
Por outro, a reacção do Governo – que, seja como for, é recordista em esbarrar no Palácio Ratom – suscita a questão de saber se foi ou não apropriada e se introduz ou não uma "pressão política insuportável" no poder judicial.
 
O Espírito das Leis
Quanto à primeira, tal como se depreende do acima, creio que é inequívoca a intromissão do TC na esfera executiva, nomeadamente, quanto à interpretação e uso do princípio da igualdade no tratamento de funcionários públicos e privados.
Em primeiro lugar, porque a fundamentação do acórdão (que muitos consideraram tecnicamente muito fraco) se baseia em princípios (alicerce das Constituições do mundo ocidental) que não estão cifrados em lado nenhum, isto é, dependem da interpretação que cada um faz deles. Ora, dentro de um cenário tão amplo quanto possível de razoabilidade, será legítimo um Tribunal afirmar que a proporcionalidade ou a progressividade deveria ser de 10%, 20% ou 80%? Está claro que não! E o TC tem-no feito, tacitamente, pelas normas que chumba.
Em segundo, ao declarar sistematicamente inconstitucionais normas de cortes na despesa (salários, subsídios e pensões pagos pelo Estado), o TC está automaticamente a “convidar” o Governo a aumentar impostos (se não se tapa de um lado, tem de se tapar pelo outro!). Tal como já tinha aludido num texto anterior, a CRP perverte no sentido da “constitucionalidade” do aumento sucessivo da carga fiscal (actualmente em níveis, esses sim, insuportáveis!), por impedir que o Estado faça o seu ajustamento através do corte na despesa pública. Esta lógica conduziu a Administração Pública para um crescimento galopante, porque, em qualquer caso, a carga tributária compensa as necessidades que essa "engorda" possa provocar.
Pergunta sumária de resposta simples: não seria função e dever da AR e Governo construir o seu próprio modelo de economia e sociedade (mais liberal ou mais intervencionista) e não do TC que se funda em princípios dúbios da Constituição para justificar opções apenas políticas?

Quanto à segunda questão, a reacção do Governo à reprovação sucessiva daqueles juízes, ela teve tanto de compreensível como de excessiva.
Por um lado, percebe-se a dificuldade de governar sujeito a inúmeros constrangimentos financeiros e políticos vindos de trás (memorando da troika, falta de instrumentos de política económica e monetária, metas do Tratado Orçamental, CRP, etc.), a que se soma um Tribunal Constitucional surdo e alienado perante esses constrangimentos (criando inclusivamente dificuldades ao Executivo que sairá das eleições legislativas do próximo ano) e incoerente perante decisões pré-programa da troika. Além do mais, não há, em Democracia, nenhuma instituição, nem decisão por si tomada, que esteja a salvo de discórdia e debate na praça pública (veja-se, a esse respeito, o que acontece nos EUA, onde as decisões do Supreme Court são amplamente discutidas e os juízes escrutinados dos pés à cabeça pelo Senado norte-americano antes de iniciarem funções).
Mas, por outro, a pulsão excessivamente partidária com que alguns militantes do PSD reagiram a este desfecho é tão ridícula quanto inadmissível.
 
Acabados de sair da caverna...

Em resumo, há uma falta gritante de noção de separação de poderes em toda esta história. Tanto de um lado, como do outro. Montesquieu seria bem capaz de explicar porquê...
«Nenhum critério densificador do significado gradativo de tal diminuição quantitativa de dotação e da sua relação causal com o início do procedimento de requalificação no concreto e específico órgão ou serviço resulta da previsão legal, o que abre caminho evidente à imotivação» (by Tribunal Constitucional, Maio de 2014)

terça-feira, 3 de junho de 2014

Congestionamento, bens mistos e a EMEL...

Estava eu a fazer a minha visita matinal ao facebook (esse assassino da produtividade...), quando me deparo com esta notícia do SOL: Petição pede o fim da EMEL. Claro está que o bichinho averso a pagar estacionamento que tenho dentro de mim sorriu, e acabei por abrir o link. Antes de mais, podem consultar a petição aqui.

Como ser complexo que sou, o (pseudo)economista sobrepôs-se ao condutor e a primeira coisa que me perguntei quando comecei a ler a notícia foi "vamos voltar a ter estacionamento gratuito em Lisboa?" Por muito boa que esta notícia fosse para a carteira dos Lisboetas (e visitantes), não será isso que se irá passar. A petição sugere que "as suas [da EMEL] competências [deverão ser] repartidas entre a Polícia Municipal (fiscalização) e as Juntas de Freguesia (recolha das verbas e manutenção dos parques)." Isto irá de encontro à mesma descentralização levada a cabo pelos serviços de recolha de lixo no Município de Lisboa (ver P.S.).

A justificação dada pelo manifesto da Petição para esta solução é simplesmente financeira, invocando que "O fim da EMEL vai ditar o fim de às despesas exigidas pela sua pesada estrutura de gestão empresarial, terminar com a atitude corporativa de prepotência que se observa em muitos dos seus agentes e devolver a Lisboa o espaço que esta empresa sequestrou em benefício dos seus próprios interesses.". O facto é que realmente se verificam empresas subcontratadas pela EMEL a fazer a fiscalização dos carros estacionados (Street PARK - aparentemente ilegal), bem como a Polícia Municipal efectua o reboque de viaturas bloqueadas pela EMEL.

No entanto, gostava de voltar à pergunta primária de toda a questão: "Porque é que é necessária a EMEL?" Em Finanças Públicas, temos 3 tipos de bens (ou serviços): Privados, Públicos e Mistos. 
1) Os bens Privados são todos aqueles em que se um indivíduo o consumir (digamos, uma lata de refrigerante), mais ninguém o pode fazer. Por existir essa rivalidade e exclusão no consumo, estes bens proporcionam oportunidades de negócio do lado da oferta, já que são pagos pela totalidade do seu valor.
2) Os bens Públicos são todos aqueles em que não existe qualquer rivalidade ou exclusão no seu consumo (digamos, uma estrada - dado que já se tem um carro), pelo que diversos indivíduos os podem consumir simultaneamente. Neste caso, não existe possibilidade de lucro com a sua venda, pelo que normalmente é destacado ao Estado o seu fornecimento.
3) Os bens Mistos, como o nome indica, combinam ambas as situações. Tratam-se de bens Públicos para os quais existem frequentemente situações de congestionamento, isto é, não existindo uma rivalidade ou possibilidade de exclusão no consumo a priori, com o acumular de consumidores vai começando a verificar-se essa rivalidade/exclusão. É este o caso do estacionamento na cidade de Lisboa e é por este motivo que a EMEL faz todo o sentido económico, para travar o congestionamento no consumo de lugares de estacionamento.

Fazendo sentido a existência de uma autoridade que regule e fiscalize o estacionamento na cidade de Lisboa, é necessário perceber qual o tipo de estrutura que esta entidade deverá ter. Actualmente, temos a EMEL, empresa 100% detida pela CML, que desempenha este papel a nível municipal. A proposta da petição é que se altere a estrutura para o nível de freguesia na recolha das receitas e manutenção dos parques, mantendo-se a fiscalização a um nível municipal, sendo assegurada pela Polícia Municipal. 

Por um lado, parece-me bem a descentralização na medida em que se aumentam as receitas das Freguesias, poderão existir economias de escala na realização de obras de manutenção/requalificação das vias e se extingue uma empresa pública (diminuição do Sector Empresarial do Estado e aumento da transparência[?]). 

Por outro lado, a coordenação desta tarefa a nível municipal parece-me mais lógica do que a nível de Freguesia, ora vejamos: quem é que irá definir a tarifa a pagar? quem definirá a distribuição das zonas (verde, amarela e vermelha) de estacionamento? a fiscalização da Polícia Municipal será organizada por freguesia ou por "rota" (dado que existem ruas em Lisboa que pertencem a mais do que uma freguesia)? Claro está que a CML poderá instituir todas estas regras centralmente e deixar apenas as questões operacionais para as freguesias, correndo-se o risco de existir um forçar de aumentos nas tarifas para que se substituam as transferências do Orçamento do Estado por receitas próprias e mantenha as verbas do OE nos cofres do Município e não nas Freguesias.

De qualquer modo, veremos como evolui esta petição e se terá consequências no futuro da EMEL. Apesar de existirem diversas questões pendentes de resposta, a iniciativa parece-me válida e lógica, pelo que assinei a petição. Convido, portanto, todos os leitores a lerem a mesma a assinarem e a refutarem (se for caso disso) tudo aquilo que aqui escrevi.




P.S.: Ironicamente, o Presidente da CML que descentralizou a recolha de lixo foi o mesmo que, em 2010, sugeriu que este serviço fosse feito a nível multimunicipal...