O que ensina o latim...

"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

sábado, 31 de agosto de 2013

Cortar nos salários?

Depois do debate que aconteceu no início do ano, a "necessidade de cortar nos salários" é um tópico que tem surgido esporadicamente ao longo deste Verão.

Eu compreendo porque há aqueles que dizem que os salários têm que descer. Quem defende a descida dos salários, sustenta-a com dois raciocínios:
  1. Menores salários leva a mais trabalhadores empregados;
  2. Permite diminuir os preços - principalmente nas exportações, o que ajudava a corrigir a balança corrente.
Eu tenho algumas dúvidas sobre os dois mecanismos.

Na primeira, pode ser por minha culpa que tenho uma visão rígida do mundo. Se uma empresa usar uma determinada técnica de produção, então precisa de trabalhadores e máquinas numa determinada proporção independentemente dos preços. Se ela precisa de 2 trabalhadores e 1 máquina para produzir 1 unidade,  e só conseguir vender 1 unidade, então empregará 2 trabalhadores e 1 máquina quer os salários desçam ou não.

Quanto à segunda, Portugal é tipicamente um país tomador-de-preços nas exportações: isto é, nós não fazemos o preço, não temos capacidade de repassar aumentos dos custos para o consumidor final. Mas, se o custo por unidade diminuir, então sim, temos margem de manobra para diminuir o preço. Temos margem para tal, mas nada o garante. A empresa pode decidir enquanto vender a preço antigo e decidir aumentar os seus lucros; ou então descer os preços, expandir a quota e assim empregar mais. 

Dito de outra forma, as minhas dúvidas são fundamentadas na não-substituição de factores e na rigidez dos preços à descida.

Mesmo com estes dois problemas, quem defende a descida dos salários ainda tem uma hipótese: descer salários abre as portas a novas empresas que são mais intensivas em mão-de-obra.

Olhemos agora para o plano interno: 
O salário, como porção do rendimento, ganha importância à medida que o rendimento decresce. Isto é só uma maneira de dizer que quanto mais pobre és, as outras fontes de rendimento (rendas, dividendos) perdem peso na composição do teu rendimento. A partir de outro patamar, o salário perde peso para transferências do Estado. Sabendo que a propensão a consumir é mais elevada nos mais pobres, então o consumo interno vai-se ressentir.

Por outro lado, há que considerar o facto de empresas e famílias terem dívidas passadas que estão fixas em preços nominais. Assim, com uma descida do salário, uma  maior porção do rendimento tem que ser destinada a honrar esses compromissos. Com uma subida da taxa de esforço não será de suspeitar um aumento do crédito mal-parado.

E não, nada disto será compensado por um aumento do investimento.

Neste cenário, o ambiente não é propício a novas empresas. A não ser que passem a exportar logo para o exterior.


Voltando ao segundo ponto, o problema do défice da balança corrente pode ser dito deste modo: acumulámos défices de 10% do PIB ao longo de anos, porque os nossos preços estavam demasiado elevados. Mas, o reverso da moeda é o mesmo que dizer que os preços estrangeiros estavam demasiado baixos para nós. E não apenas para nós, para a Espanha e a Grécia e mais uns tantos.

Curiosamente, o reverso da moeda a descer os salários em Portugal é subir os salários na Alemanha. Prefiro esta solução e já foram tomados alguns passos nesse sentido. 


Em nenhum destes pontos estou a ser taxativo. Apesar de tentar estar a explicar o panorama a outros, estou principalmente a pensar para mim.

Sobre o seguro obrigatório de bicicleta

Através da voz do seu presidente, Carlos Barbosa, a ACP está a pedir a implementação de um seguro obrigatório para bicicletas. Pelo que li no artigo, seria um seguro de responsabilidade civil. Mas, por agora, quero focar apenas na necessidade de existir um seguro obrigatório ou não para bicicletas.

Carlos Barbosa acredita que as bicicletas devem ter seguro, porque «estão em igualdade de circunstâncias em relação a um veículo a motor e têm um determinado número de regalias novas, a partir daí é fundamental que também tenham um seguro de responsabilidade civil contra terceiros».

Eu não comungo desta opinião. Podem estar em igualdade de circunstâncias no que toca à lei rodoviária(?). Mas não é por aqui que se decide a obrigatoriedade do seguro. Há que olhar para a frequência dos acidentes e o montante dos danos causado por ciclistas para saber se a obrigatoriedade é necessária - se promove o bem-estar social. Dei uma vista de olhos pelo Instituto de Seguros de Portugal, mas não encontrei nada.

Ao que parece, o receio do Carlos Barbosa não é fundado na experiência passada, mas no receio que «ao aprenderem a conviver, haja vários acidentes e problemas. Acho que é fundamental todos os ciclistas, até para sua própria protecção, terem um seguro de responsabilidade civil.» Realmente, mais vale prevenir do que remediar. Então, nesse caso convém perceber exactamente como as alterações vão levar a um aumento dos acidentes. E se tal acontece devido a uma alteração na lei, não seria mais sensato corrigir a lei?

Mais um e último pormenor, já que, segundo o presidente da ACP os acidente dever-se-ão ao período de aprendizagem, então este aumento é temporário e portanto pede medidas temporárias - não permanentes, como é sugerido.

Pela parte que me toca, este assunto não é directamente do meu interesse. Não ando de carro e não ando de bicicleta. Ando a pé e de transportes públicos. O que me chamou a atenção para este caso foi a leviandade com que se sugerem alterações à lei sem fundamentar devidamente o pedido. É verdade que o debate de alguma maneira tem de começar, mas agradecia que começasse com pelo menos um pé numa realidade mensurável. Para quem realmente se importa com este assunto, espero ter encaminhado o debate.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Cuidado na descida (do desemprego)

Parafraseando Charles Dickens:

Era o melhor dos sinais, era o pior dos sinais.

Há quem veja muita esperança numa descida na taxa de desemprego. Eu vejo problemas.

É normal que um cidadão comum veja uma descida da taxa de desemprego como algo para festejar, porque associa essa descida ao facto de alguém ter encontrado emprego. Por virtude da minha formação, consigo ler melhor o que se passa por detrás da taxa de desemprego. E sei que há outras razões para a taxa de desemprego descer, e essas não envolvem encontrar emprego.

A taxa de desemprego pode estar a descer tão pura e simplesmente porque há desempregados, tal é a ansiedade e a frustração, que desistiram de procurar emprego. Isto é um mau sinal.

Também pode descer porque desistiram de procurar emprego em Portugal, fizeram as malas e emigraram. Isto é um mau sinal.

No final, perdemos mão-de-obra. E por sinal qualificada. E por sinal, Portugal está a adaptar-se a um novo normal que deixa muito a desejar.

Agora, como sabemos porque razão o desemprego desceu? Para esta crise, um bom indicador seria olhar apenas o rácio entre empregados e população. Outro, mais trabalhoso, seria olhar para os principais fluxos que afectam o desemprego: o saldo migratório, os novos reformados, os novos empregados e aqueles que acabaram de entrar no mercado de trabalho.

Infelizmente, o INE é um instituto de estatística que a meu ver deixa muito a desejar e recolher estes dados não é fácil. E quando os encontro, não estão actualizados. Se quisesse construir  o rácio emprego população, só o podia fazer até o 1º trimestre de 2009. Ridículo. Há quem já tente construir séries mensais para o PIB e nós ainda vamos em 2009... No entanto, vou procurar mais dados e escrever outro artigo na altura apropriada.

Mas fica o aviso: associar uma descida da taxa de desemprego a uma recuperação económica pode ser um engano. E muito provavelmente o é.

domingo, 25 de agosto de 2013

Internet - em fase de construção

Quando vejo uma pessoa a apontar para o lado negro da Internet, recordo-me disto:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança! - Dante
Mas, de facto, a internet tem um lado negro. E qualquer pessoa que já tenha lido os comentários a uma notícia ou no Facebook facilmente encontra comentários instigadores e destilando ódio. E hoje o Público evoca a besta das suas profundezas.

As razões pela atitude mais agressiva passam pela irresponsabilidade que o anonimato traz, a comunicação assíncrona - há um desfasamento na resposta às nossas acções -, e, gosto desta hipótese, a falta de contacto visual.

Esta última hipótese já havia sido levantada para o comportamento abusivo que os condutores exibem detrás do volante. Como não conseguimos ver a cara das outras pessoas, não conseguimos reconhecer as suas emoções e portanto tratamo-las como não-pessoas. Curiosamente, nós também fazemos o mesmo ao apelidar dos internautas irresponsáveis de tróis. Sim, o plural de trol é tróis - pense em sol e confirme aqui.


Há quase duas semanas, o Público tomo a iniciativa de terminar com os comentários anónimos nas suas peças. Vejo a medida com bons olhos. Como moderador no Público, cheguei a ler muitos comentários mal intencionados e insidiosos, e muitos mais duvidosos. Ao afixar uma identidade virtual aos comentários, espero que a porção dos comentários mais duvidosos decresça.

Mas essa não me parece ser a medida mais eficaz. Acredito que ao premiar comentários que elevam a qualidade do debate, será um bom desincentivo para escrever tontarias e um bom incentivo para investir naquilo que se escreve.


Acima de tudo, é importante tomar uma atitude contra este comportamento. E essa mudança devia começar naqueles que não vêem mal em destilar o seu ódio na internet, ao mesmo que criamos o ambiente mais propício possível à conversa franca e cordial. Porque no momento em que nós abandonarmos toda a esperança, esse é o dia em que a internet irá morrer. E no seu lugar surgirá um meio mais controlado, mais vigiado e profundamente mais sinistro.

sábado, 24 de agosto de 2013

A agricultura não é o El Dorado de Portugal

Eu gosto do campo. Ver algo a crescer à nossa frente dia após dia com a nossa ajuda é mágico.

Dito isto, não deixo a magia me tapar a vista para a realidade. No discurso público - com os empurrões do CDS e do PCP em particular -, a agricultura em Portugal é vista como o Sector Salvador da Pátria. Mas não se deixe enganar por um passado sem futuro.

Um dos problemas de Portugal não se deve ao facto de os portugueses trabalharem pouco, mas sim por trabalharem em actividades que são tipicamente de baixa produtividade - isto é, acrescentam pouco valor. E a agricultura e a pesca são dois desses sectores.

Olhando para o sector como um todo, e com os últimos dados que o INE disponibiliza,

Fonte: INE - C.4.1 e C.1.1.2

Temos que, em média, desde 1995 o valor acrescentado bruto por cada trabalhador continuou inalterado nos 5.000€/ano. Por outro lado, o valor acrescentado por cada trabalhador na economia como um todo quase que duplicou entre 1995 e 2010.

Voltando-me para a notícia que me levou a escrever este artigo, louvo a criação de emprego e a contribuição para a correcção do défice externo. Contudo, sendo a agricultura um sector com baixa produtividade, será apenas natural esperar que gere empregos precários e com baixos salários.

Para confirmar este ponto, usei os Quadros de Pessoal de 2010, e vejo que a remuneração base média no sector agrícola é de  683,57€, enquanto que a média nacional é de 900,04€ - uma diferença de 32%.

E agora reparem que é neste sector que não cresce em termos de produtividade e de baixos salários que alguns partidos e portugueses vêem como o El Dorado português. Só posso supor que esta ladainha continua a vingar no discurso público, porque os portugueses não conhecem a realidade, e não a conhecem porque os comentadores não fazem questão de a divulgar. No fundo, imagino que as duas partes preferem a magia do campo ao realismo da vida.

Para terminar, só quero dizer que não tenho problemas que apostem na agricultura - é um sector com as suas oportunidades de negócio como qualquer outro. Mas oponho à atenção desproporcionada que recebe e à romantização do sector.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Como ver 1,1% de outra maneira.

Encontro no Público uma boa notícia: Portugal sai da recessão com crescimento de 1,1% no segundo trimestre.

Agora, antes de dispararem os foguetes sobre o crescimento de 1,1% (em relação ao trimestre anterior!), deixem-me mostrar o mesmo de outra forma - em relação àquilo que já perdemos.



Já agora, eu seria muito mais modesto quando apelidasse isto de uma vitória da austeridade. Nem porque é uma vitória pírica, mas porque afirmar que "as exportações cresceram graças à austeridade" exige alguma demonstração.

domingo, 11 de agosto de 2013

O calcanhar de Aquiles do esperanto.

«Ao contrário de línguas como o hebreu, o filipino ou o suaíli, que floresceram depois de serem criadas ou recriadas, o “esperanto nunca foi capaz de se apoiar na estrutura oficial de um estado, apesar de duas resoluções das Nações Unidas a seu favor” (...) 

Apesar de concordar com a premissa de que a falta de um aparelho governamental para apoiar o ensino e promoção do esperanto limita o seu crescimento, esse não me parece ser o seu principalmente problema.

A língua é um elemento indissociável da nossa identidade cultural. E compreende-se facilmente porquê: é o nosso principal meio de imprescindível comunicação. E como o criador do esperanto, Ludwig Zamenhof, deve ter reparado, ao mesmo tempo que nos une enquanto sociedade é também o grande factor que distingue nós d'outros.

Ao procurar uma língua universal, ficamos com menos uma barreira que nos distingue. Mas há muitos edifícios construídos juntos a essa barreira. Há toda uma identidade associada a essa língua: uma história, um povo, uma terra, uma cultura. E isso é um motivo para aprendermos e apegar-nos a essa língua.

Ao esperanto faltam-lhe estes elementos. O esperanto é, em muitos sentidos, uma língua artificial e vazia. No seu objectivo de ser uma língua do mundo torna-se numa língua de ninguém. Não é atractivo aprender esta língua, apesar do seu objectivo nobre, e da sua possível utilidade no mundo dos negócios.

E por estes motivos, expressões que dão vida e a sua graça a uma língua não lhe surgem com facilidade. Expressões como "calcanhar de Aquiles".

Pensões de comandante num barco a afundar-se

Tenho vindo a chamar à atenção para a situação de certos grupos profissionais que não podem deixar de ser envolvidos no esforço colectivo de evitar o afundamento do barco. O barco neste caso chama-se Estado e carrega excesso de peso, os contribuintes é que o remam.
Fi-lo a propósito dos militares (aqui), chamei igualmente à atenção que dos professores (aqui) e eis senão quando aparecem os diplomatas e juízes para os quais o governo pia fininho!

O governo, não sei se pela entrada ao serviço de Rui Machete, veio anunciar que as pensões mais altas desses dois grupos profissionais ficarão de fora dos cortes a 10% previstos para as demais do regime da CGA, sob justificação de que as mesmas já haviam sido alvo de cortes anteriormente.
Convém destacar que o facto de diplomatas e magistrados receberem pensões elevadas significa que, tanto uns, como outros, são à partida privilegiados pelos salários que auferem enquanto estão no activo, a que se juntam ajudas de custo para tudo e para nada e condições especiais no regime de férias.
Aqui há tempos um estudo veio confirmar que os juízes portugueses são dos que mais ganham para o pouco que fazem, entres pares europeus. Com a conhecida celeridade e bom senso das suas decisões (aqui)…
Por seu lado, os diplomatas, embora reconheça o competência da sua acção, não deixam de ser profissionais muito favorecidos, não só pela vida que levam "em nome do Estado", como também pela network que criam, tanto cá, como lá fora, o que os dispensa de agonias se algum dia tiverem de largar a vida boa do "croquete".
Como não aprecio "excepções" (muito menos deste tipo), nem tão-pouco grupos de interesse, vejo-me na obrigação de trazer este apontamento.
Não se julgue que isto passa despercebido. Se o barco é de todos, todos têm de puxar por ele, mais ainda os que têm músculo para isso.

Ou há moralidade, ou comem todos!

sábado, 10 de agosto de 2013

Absurdos judiciários

A silly season traz consigo, como o próprio termo indica, disparates. A justiça, para mal de nós, tem acompanhado a restante "actualidade" e presenteou todos os que a pagam com dois belos estalos no bom senso.


Ainda era Álvaro ministro e Assunção Cristas grávida do seu bebé e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja condenou-os a pagar cerca de 40€/dia até que a obra na A26 acabe.
Logo deduzi que uma auto-estrada não se faz de hoje para amanhã, pelo que isto ainda vai dar um rendimento jeitoso ao dito tribunal, à custa do Álvaro que já nem é ministro e da Cristas que já teve a criancinha. Mas, para mim, o montante da dita multa é irrelevante (perece-me irrisória, para gente que ganha milhares). Prefiro o simbolismo da decisão e a jurisprudência que ela pode trazer.
A construção do troço Sines-Beja foi parada em 2011 por falta de financiamento, segundo justificação oficial. Não discuto isso. Embora o país esteja pintado de auto-estradas de norte a sul, a de Sines-Beja não é uma qualquer, na medida em que permitirá o desenvolvimento de Sines como porto de chegada de mercadorias escoadas para o centro Europeu e aproxima o litoral e o interior do Alentejo desertificado. Mas em alturas de troikas não há vícios, o que justifica o adiamento.
Ora, se ao governo compete gerir os recursos disponíveis da maneira que ache mais adequada (sujeitando-se ao escrutínio eleitoral), aceito que a dita auto-estrada pare a sua construção, desde que as condições de segurança estejam garantidas para aqueles que continuam a frequentar a estrada inacabada. E é aqui que começa o disparate.
O tribunal não se limitou a dizer "tapem lá os buracos e deixem a iluminação em ordem para quem lá circula", mas foi ao ponto de dizer "não só tapem os buracos, como, até o serviço estar feito, os ministros levam uma multa diária para não se armarem em espertos".
A decisão é absolutamente inédita, porque condena, em nome individual, os responsáveis políticos pelos seus actos de gestão em exercício de funções, em vez do Estado na sua representação (o que acontecia até hoje). O que, à partida, me deixou esperançado, na medida em que o salário que certa farmacêutica paga a José Sócrates, bem como as infindáveis contas que ele e a sua família detêm em offshores, serão certamente penhoradas até que os 60 pontos percentuais da dívida pública da sua responsabilidade estejam pagos. É isto ou estarei a ver mal as coisas?
Porque a decisão judicial despreza o facto do país estar sob assistência externa e, por essa razão, não poder fazer tudo o que lhe apetece (já nem falo de nem ter dinheiro para isso), despreza que a cadeia de decisões vai desde o chefe de obras da empresa contratada pelo Estado, aos director-gerais secretários-de-estado e ministros de obras públicas. Ou seja, porque diabo o inteligente juiz não foi multar o encarregado da obra por ter deixado a estrada num autêntico pardieiro? Ele há coisas que não dá para entender.

O segundo disparate judiciário consegue ser mais insólito do que o primeiro. O que ficará demonstrado pelo próprio texto da notícia, a qual não me merecerá mais do que a sua pura a simples transcrição: uma gargalhada absoluta.
O Tribunal da Relação do Porto obrigou uma empresa de Oliveira de Azeméis a reintegrar um empregado da recolha do lixo que tinha sido despedido por se ter descoberto que estava a trabalhar alcoolizado.
Tudo se passou no Dia dos Namorados do ano passado, a 14 de Fevereiro. Ainda não eram 18h quando o camião do lixo em que seguia o empregado se despistou, tombando para o lado direito. Quem ia ao volante era um colega seu, que se encontrava igualmente etilizado. Mas enquanto a taxa de alcoolemia do motorista, entretanto também despedido, era de 1,79 gramas por litro, a deste trabalhador, um imigrante de Leste, ascendia às 2,3 gramas por litro, revelaram as análises feitas no hospital para onde ambos foram transportados.
“Incorreu de forma culposa em gravíssima violação das normas de higiene e segurança no trabalho”, alegou a empresa de gestão de resíduos Greendays para lhe levantar o processo disciplinar com vista a despedimento, mostrando pouca compreensão para com os hábitos do funcionário.
“Incumpriu o dever de realizar o trabalho com o zelo e a diligência devidos, revelando um profundo desinteresse pelas funções confiadas, contribuindo para a lesão de interesses patrimoniais sérios e afectando de modo gravoso a imagem pública” da firma, acusou o patrão.
Não foi, no entanto, esse o entendimento dos juízes que analisaram o caso. Muito pelo contrário: segundo o Tribunal da Relação do Porto, que confirmou recentemente uma sentença de primeira instância, os resultados das análises ao sangue nunca poderiam ter sido usados pela entidade patronal sem autorização do trabalhador.
Por outro lado, alegam ainda os juízes, não existe na Greendays nenhuma norma que proíba o consumo de álcool em serviço. Por isso, no seu acórdão, os magistrados deixam um conselho à firma: que emita uma norma interna fixando o limite de álcool em 0,50 gramas por litro, “para evitar que os trabalhadores se despeçam todos em caso de tolerância zero”.
“Vamos convir que o trabalho não é agradável”, observam ainda os desembargadores Eduardo Petersen Silva, Frias Rodrigues e Paula Ferreira Roberto. “Note-se que, com álcool, o trabalhador pode esquecer as agruras da vida e empenhar-se muito mais a lançar frigoríficos sobre camiões, e por isso, na alegria da imensa diversidade da vida, o público servido até pode achar que aquele trabalhador alegre é muito produtivo e um excelente e rápido removedor de electrodomésticos.”
Afinal, questionam, que prejuízo para a sua imagem pode a firma alegar? Não há qualquer indício de que o homem estivesse a recolher o lixo “aos tombos e aos pontapés aos resíduos, murmurando palavras em língua incompreensível”.
As leis laborais não versam sobre os estados de alma do trabalhador, observam: “Não há nenhuma exigência especial que faça com que o trabalho não possa ser realizado com o trabalhador a pensar no que quiser, com ar mais satisfeito ou carrancudo, mais lúcido ou, pelo contrário, um pouco tonto.”
A Greendays ainda não decidiu se vai recorrer do acórdão do Tribunal da Relação do Porto.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Livre arbítrio, prostituição e venda de órgãos

O artigo de hoje começou com uma discussão  num grupo de Economia no Facebook que entretanto foi apagada, porque o tema foi julgado como sendo demasiado sensitivo apesar de a discussão nunca ter atraído nada de especial. Creio que o exemplo era este, mas pouco importa.

A discussão começou sobre as posições que alguns economistas defendem sobre o mercado de órgãos, prostituição, órfãos, livre arbítrio e outros mais. Apesar de os temas parecerem ser sensitivos, eles não deixam de ser socialmente relevantes, o que pede a sua discussão calma e racional.

Começando com o caso da jovem brasileira que tentou vender a sua virgindade, eu não vejo nenhum problema de maior na venda da sua virgindade, desde que a venda da virgindade não produza efeitos que afectem a vida de um deles depois de realizar a transacção. Com isto, eu quero dizer desde que haja a transmissão de DSTs ou outras repercussões.

Também não tenho problema com o facto de ter publicitado o negócio. Nem com a prostituição em geral. Não me parece ser a melhor escolha de vida, mas não a vejo com desprezo. Portanto não me oponho à prostituição.

Contudo, tenho um problema quando a prostituição é um resultado do tráfego humano. A escolha não é livre, mas o facto de poder mascarar-se como tal aos olhos da lei, torna esta actividade ilícita e o sofrimento humano subjacente mais provável.

No que toca à venda de órgãos, pensemos do seguinte modo:
Olha que é um bom rim
Porque não posso vender um rim em troca de 15 000? Se essa fosse a minha escolha, feita de livre vontade e na posse de toda as minhas faculdades, e que só a mim me afecta, porque há-de a minha escolha ser barrada por terceiros?
Os problemas que eu encontrei é que uma escolha deste tipo normalmente não é racional, mas pejada de emoção como o desespero. E mesmo quando pode ser racional, tenho sérias dúvidas que seja feita com uma boa base de informação, pelo que subestimam o seu sofrimento futuro. A adicionar que num sistema de saúde universalista, problemas de saúde, independentemente da causa, apresentam sempre externalidades dispendiosas.

De forma sucinta: mesmo que sejam feitas por livre vontade, podem não ser racionais ou então apresentam externalidades.

Num aspecto mais pragmático, se a venda de órgãos fosse legal, também pode acontecer o mesmo que no caso da prostituição, no sentido em que ao abrir os mercados de órgãos é possível que mão criminosa consiga forçar que aqueles que vivam em dificuldades a vender os seus órgãos.

É verdade que sempre que se dá liberdade, por muito pouca que ela seja, também se abra a porta à possibilidade de abuso dessa mesma liberdade ou a outras formas de contornar a lei. O importante está em saber se o risco vale a pena, quer para a sociedade como para os indivíduos.

sábado, 3 de agosto de 2013

Resultados da Sondagem

Passado um mês do início da nossa primeira sondagem (entretanto fechada) e vistas as consequências e as soluções tomadas por todos os agentes políticos envolvidos, fica aqui a apresentação dos resultados da iniciativa e alguns comentários acerca do que se seguiu ao impasse político a que se chegou.

Resultados Apurados:
Manter o Governo: 11 votos (22%)
Eleições: 5 votos (10%)
Novo Governo (sem eleições):  4 votos (8%)
Governo de Salvação Nacional (iniciativa Parlamentar): 5 votos (10%)
Governo de Salvação Nacional (iniciativa Presidencial): 10 votos (20%)
Governo Tecnocrata (iniciativa Presidencial): 14 votos (28%)
Total: 49 votos

Antes de mais, agradecer a todos os que votaram, esperando que continuem a acompanhar o Tricontraditorium e a participar em futuras iniciativas do género. Em segundo lugar, lamentar que a publicação mais vista nos primeiros 6 meses de blogue (quase 300 visualizações) apenas tenha tido 49 votos (cerca de 1/6 das visualizações).

Quanto aos resultadosparece-me de salientar que 56% dos votantes pretendiam que o Presidente da República levasse o seu discurso mais longe, nomeando um novo governoDestes, a esmagadora maioria pretendia que o governo nomeado pelo PR fosse de consenso alargado ou apartidário (seja por via de Salvação Nacional ou por via Tecnocrata). No entanto, Cavaco Silva (após as negociações falhadas entre PSD, CDS e PS) volta com o primeiro discurso atrás e decide manter o governo em funções tal como está. 

Após ter escrito o Politiquicesem conversa com um amigo, fui alertado para uma "pequena" falha no raciocínio do PR: segundo o nº.2 do Art. 195º da CRP "o Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado." Assim, como é que Cavaco poderia anunciar a demissão do Governo (e a dissolução da AR) e a convocação de novas eleições com mais de um ano de antecedência?! Cavaco terá uma bola de cristal que lhe prevê o futuro no gabinete? Como é que um PR pode saber que o "regular funcionamento das instituições democráticas" não está garantido daqui a um ano, e agora está? Fica a questão...

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Capitalismo clientelista e a Goldman Sachs

O capitalismo clientelista é umas das muitas possíveis traduções de crony capitalism, entre capitalismo de compadrio, capitalismo de camaradagem ou capitalismo de conivência. Prefiro a alternativa capitalismo clientelista, porque o termo clientelismo tem o seu lugar no debate público e por associá-lo a rent-seeking.

Por capitalismo clientelista entenda-se que estamos a falar de uma forma degenerada de capitalismo, em que indivíduos ou empresas usam a sua rede de contactos ou influência junto de outros - tipicamente o Estado, mas não só - de modo a obter ganhos injustificados na forma de subsídios, contractos, isenções ficais, regulação mais favorável, etc.

Mas hoje pretendo falar sobre este tipo de capitalismo degenerado na sua vertente de rent-seeking e com um caso em concreto. E rent-seeking não é nada mais que procurar manipular o sistema para obter rendas excessivas. Na verdade, clientelismo é uma particularização de rent-seeking.

E através do The Daily Show, apresento-vos um dos exemplos mais marcantes da actualidade deste capitalismo degenerado.

Vídeo 1:
Vídeo 2:

Para o senhor do vídeo 2 que não percebeu o esquema, permita-me:

A Goldman Sachs (GS) faz duas coisas: transacciona no marcado de futuros em alumínio e gere os armazéns de alumínio. Acontece que a GS está a comprar directamente ao produtor e a acumular inventários, pelo que a oferta de alumínio no mercado diminui, o que, dada a inelasticidade da procura, leva ao aumento do preço do alumínio.

Alguém pode fazer a seguinte observação: Ah, mas o espaço de armazenamento é limitado, pelo que, tarde ou cedo, vão ter que começar a despejar esse inventário excessivo no mercado e portanto o preço vai descer. Verdade, mas vai ser a GS a ditar o quando, e no mundo dos negócios o tempo é tudo. Basta usar futuros para amealhar um bom pé-de-meia.

Mas não temos apenas um banco a manipular os preços para poder forrar os bolsos, mas também i) a manipulação está a afectar os cidadãos directamente e não apenas os restantes jogadores da bolsa, já que a manipulação vem através das quantidades, pelo que produtos que incorporam alumínio estão a subir de preço também; ii) apesar de obedecer à letra da lei  que não permite hoarding, está claramente a violar o seu espírito; iii) ainda por cima tem que gastar recursos em actividades absolutamente nada produtividades para contornar a lei.

Este enriquecimento através da manipulação dos mercados conjugados com actividades que acrescentam zero ao bem-estar social, além de contribuir para o aumento da desigualdade, é absolutamente desprezível e criminoso. Na prática, é a isto que o capitalismo clientelista se resume.

Podem ler mais sobre o assunto aqui:
  1. Goldman's new money machine: warehouses
  2. Goldman Sachs’s Aluminum Pile
  3. A Shuffle of Aluminum, but to Banks, Pure Gold