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"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

quinta-feira, 9 de maio de 2013

As Armadilhas de Liquidez

Tenho muito a concordar com o que o José Gusmão escreveu neste artigo, e tanto ou mais a discordar com o que ele escreve no mesmo artigo.

Já em 2008, quando o Krugman e outros começaram a apelidar da actual situação de uma armadilha de liquidez, começou a discussão sobre «o que é uma armadilha da liquidez?» e esse tema tem surgido algo esporadicamente até hoje.

A definição que o Gusmão apresenta é esta:
«O termo Armadilha de Liquidez aplica-se a uma economia em que a Política Monetária perdeu eficácia, porque os investidores preferem manter liquidez, seja porque esperam deflação ou inflação muito baixa, seja por considerarem que a procura agregada é insuficiente. Em português simples, os agentes preferem guardar o seu dinheiro a emprestá-lo ou investi-lo por considerarem a conjuntura desfavorável.»
Se há consenso sobre a armadilha de liquidez é que o seu aspecto central reside na ineficácia da política monetária. É assim que o Krugman define armadilha de liquidez, é assim que o Gusmão a apresenta. Contudo, o modo como a armadilha da liquidez opera já difere entre o Krugman e o Gusmão.

O negrito na citação é de minha autoria e serve para chamar a atenção para aquela que é a definição típica de Keynes de armadilha de liquidez antes de 2008: os agentes dão grande preferência à liquidez, pelo que eles absorvem toda a oferta de moeda - a procura de moeda aumenta a par da oferta, pelo que a taxa de juro fica presa num patamar positivo, a política monetária não é capaz de a diminuir e portanto esta torna-se ineficaz. Para o Krugman, traduz-se na exaustão da política monetária convencional, ou seja, a política monetária (convencional) torna-se ineficaz, porque atinge o seu limite - the zero lower bound -, ou seja, a taxa directora fica a 0%.

Ora, na definição de Keynes, os agentes querem guardar uma enorme (só para não dizer infinita) quantidade de moeda com eles. Se olharmos para os dados, vemos que a poupança privada tem aumentado nos últimos anos, o que parece confirmá-lo:

Portugal (fonte: BdP)
As famílias e as empresas, como desejam guardar mais dinheiro consigo, para pouparem mais. Vemos no gráfico a poupança das famílias (S Fam) e das empresas (S Emp) a aumentar desde 2008. O que se enquadra na ideia geral do "queremos guardar dinheiro".

Estados Unidos da América (fonte: FRED)
Os mesmos dados, mas para os Estados Unidos. Vemos o sector empresarial (não financeiro) dos Estados Unidos a passar de uma posição devedora para aforradora, o mesmo que o sector empresarial português deseja. Contudo, o trajecto da poupança das famílias não é exactamente o mesmo; não há como negar que subiu a seguir ao estalar da crise em 2008, mas desde então serpenteia por entre 2 e 4%.

Mostro estes dois gráficos para mostrar que há uma diferença entre as duas armadilhas de liquidez, que faz diferença o modo como a história é contada, que é importante compreender o que está a acontecer para guiar a política económica pelo melhor caminho.

Com o Krugman, o que temos é uma falha de parte do Banco Central em fixar a taxa de juro de equilíbrio, porque esta é negativa. Consequentemente, temos uma procura agregada inferior ao produto potencial, e daqui desenvolvem-se dois grandes problemas: i) desemprego, ii) menos e menores oportunidades de investimento. Nada diz sobre o desejo de guardar moeda.

Neste cenário, as famílias tendem a poupar mais, para acumular activos financeiros, para fazerem face à possibilidade de caírem no desemprego. Naturalmente, quanto maior a taxa de desemprego, maior esse receio, e por isso há mais famílias a poupar e a poupar mais. As empresas, por seu turno, como não têm muitas oportunidades de investimento, contraem menos crédito, e talvez, decidem repagar os empréstimos que já têm contraídos em vez de renová-los, daí vermos o aumento da sua poupança.

Tendo isto em mente, o facto de as injecções de liquidez de um banco central no sistema financeiro não se materializarem num aumento da oferta de moeda, não é portanto um resultado dos bancos pedirem margens proibitivas no crédito, mas sim porque as famílias e as empresas não desejam mais crédito.

Aliás, numa armadilha de liquidez as taxas de juro dos créditos às empresas tendem, como é óbvio, a tender para 0, como se pode ver no gráfico seguinte:



O que o Gusmão devia estar a pensar era no caso do português e grego. Mas nesses casos, há outras explicações para haver spreads tão elevados, nomeadamente o risco inerente a esses países e as restrições de capital, e essas não envolvem armadilha de liquidez.

Portanto, esta afirmação:
«Em resultado disso, assistimos a níveis baixos de crédito a empresas não-financeiras e famílias, apesar de uma política monetária expansionista. Os bancos financiam-se mais barato mas exigem margens proibitivas no crédito.»
É falsa. Não digo que taxas de juro mais elevadas não prejudiquem a economia - é óbvio que prejudicam -, mas essas "taxas proibitivas" não são fruto da armadilha de liquidez.

Para terminar, este último comentário do Gusmão:
«E forneço uma previsão, quantificada: o impacto de mais esta redução das taxas de referência do BCE na economia real, em contexto de políticas generalizadas de contenção orçamental será de... zero. Vírgula zero»
O impacto desta medida é quase nulo, mas é particularmente benéfica para Portugal. No nosso caso, as famílias estão mais endividadas do que noutros países europeus - devido à compra de habitação, cujo crédito está indexado à EURIBOR -, e daí o impacto será sentido com mais força cá, do que noutros países.

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