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"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O impacto do salário mínimo - Parte III

Parte II

Num artigo anterior critiquei a visão mais neoclássica sobre o impacto do salário mínimo. Neste irei apresentar a visão keynesiana sobre o assunto com mais cuidado.

Recapitulando a minha crítica à visão neoclássica: sim, o aumento do salário mínimo tem efeitos distorcedores, mas não é verdade que esses efeitos traduzam-se inexoravelmente no aumento do desemprego. Na verdade, as empresas têm vários meios de lidar com o aumento do salário mínimo.

Adiante. O Alexandreu Abreu responde à oposição de Cosme Vieira de outro modo: ao aumentar o salário estamos a desviar rendimentos da empresa para os trabalhadores, tendo estes últimos uma propensão marginal a consumir maior, a procura de bens e serviços aumenta, o que contraria a tendência para diminuir a procura de trabalho (mão-de-obra).

Para melhor explicar este efeito pensem no seguinte caso: uma pessoa, o Zé, que ganha 500€/mês, e paga o telefone, a casa, a água e a luz, e juntamente com comida e outras despesas mais pontuais (vestuário, escola...), e chegado o final do mês não conseguiu poupar. Ou seja, o consumo do Zé foi de 500€ e a poupança de 0€.

Pensemos agora noutra pessoa, o Manel, que ganha 5 000€. Tem as mesmas necessidades básicas que uma pessoa que ganha 500€, mas como ganha mais, deve saciar essas necessidades com bens de maior qualidade e aproveitar para saciar outras necessidades, pelo que gasta mais. Mas, ainda é assim, é capaz e deseja  poupar. Imaginemos que consumo do Manel cifra-se nos 4 000€ e a poupança nos 1 000€.

Neste nosso esquema mental com o Zé e o Manel, a procura agregada é dada pela soma do consumo do Zé e do Manel, que é de 4500€. Agora, o que o Alexandre Abreu sugere é transferir rendimentos do Manel (que na realidade corresponderia a uma empresa) para o Zé.

Vamos dizer que o Manel "dá" 500€ ao Zé. Por consequência, o consumo do Manel diminui para, digamos, 3750€ e a sua poupança desce para 750€; por outro lado, o consumo do Zé sobe para 950€ e a sua poupança aumenta para 50€. Neste caso, a procura agregada aumenta de 4500€ para 4700€.

Como a procura agregada aumenta, a produção aumenta, e para a produção aumentar o desemprego diminui. É este o raciocínio do Alexandre Abreu.


Ora, o Cosme Vieira rejeita este raciocínio com um argumento semelhante à treasury view. Há que reparar que o consumo não é o único componente da procura agregada e temos que considerar em particular o investimento. E ao desviar rendimento das empresas para o consumo, então estamos a reduzir as suas capacidade de investimento.

Para mostrar este ponto vamos voltar ao Zé e ao Manel. No início, tínhamos que o consumo dos dois era de 4 500€ e a poupança de 1 000€. Após o aumento do salário, temos que o consumo passa para 4 700€ e a poupança para 800€. Agora, basta perceber que o investimento é financiado pela poupança, pelo que Poupança = Investimento. Tendo em conta que a procura agregada é definida (neste caso) como

Y = C + I

Vemos que a produção não aumentou de caso para o outro, mas continuo nos 5 000€. Nada mais fizemos que transferir rendimento de um lado para o outro, sem que isso diminua o desemprego.


Bem, isto não é inteiramente verdade. Para compreender onde jaz a diferença, tomemos em conta este esquema:
Como é fácil de entender o produto (PIB) desta economia é de 100 unidades. Temos um consumo de 50, um investimento de 50 que dá 100. O rendimento do trabalho é 50, o rendimento do capital é 50, que dá 100. Se alguém estivera a pensar porque estão ali os bancos, é para mostrar que estão ali para canalizar as poupanças para o investimento.

Vamos ver o que acontece se aumentar a fatia dos salários?
Como já seria de esperar, o produto desta economia é de 100 unidades, pelo que não seria de esperar uma diminuição do desemprego por aumentar os salários. A diferença reside na composição do produto agora.

Onde está o erro no raciocínio do Cosme Vieira, então? Acontece que em períodos de depressão não temos S = I, mas mais provável do que não temos S > I - a poupança é superior ao investimento. Vamos ver o que acontece:

Então, o produto desce de 100 para de 75 (C+I) unidades, pelo que estamos perante uma recessão. Perguntam o que aconteceu às outras 25 unidades? Simplesmente não foram empregues. São dinheiro "parado". É normal, durante uma recessão não há muitas boas oportunidades de investimento, portanto o investimento diminui e com isso o crédito.

Agora, o que acontecerá se os salários aumentaram?
Ora, ora! O produto subiu de 75 para 85 (C=60+I=25) unidades, porque os salários aumentaram!  Reparem que o aconteceu aqui foi uma transferência dos capitalistas para os trabalhadores. O problema é que a poupança dos capitalistas não estava a ser aplicada, e essa poupança foi desviada a priori para aqueles que empregam o dinheiro.

Nos casos anteriores, a transferência de rendimento para os trabalhadores não afectava o produto, porque no pleno emprego não há recursos desempregados, pelo que a poupança (tende) é igual ao investimento.

Como Portugal está de facto numa recessão, só para não dizer depressão, o aumento dos salários reais realmente iria aumentar a procura agregada e portanto diminuir o desemprego - pelo menos nesta análise.

Há um possível problema que não pode ser ignorado sobre esta medida. Vou deixar isso para a próxima parte desta série.