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"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

terça-feira, 16 de abril de 2013

O papel das Reservas de Ouro na crise da Dívida

Desde o início da crise da Dívida Soberana em 2009/10 que se tem falado intermitentemente na possibilidade de se utilizarem Reservas de Ouro para ajudar a pagar dívida. Antes de mais, porquê o ouro? Porque é altamente líquido (em termos financeiros, leia-se facilmente transaccionável) , de valor real (ao invés de alguns títulos que não têm valor real, apenas financeiro) e continua a ter potencial de valorização (portanto continuam a existir interessados em investir nele).

Pegando no caso Português, e antes de explicar as implicações da sua venda na economia, convém apenas enumerar alguns factos acerca das nossas Reservas (e dados económicos):
1) O Banco de Portugal tem Reservas de Ouro no valor de cerca de 16,7 mil milhões de euros, o que cobreria cerca de 8% da nossa Dívida Pública (cifra-se em cerca de 200 mil milhões de euros - fevereiro de 2013). Também poderia cobrir 40% das necessidades de financiamento para 2013.
2) Portugal tem uma das maiores Reservas de Ouro do mundo (em termos relativos - cerca de 9,75% do PIB). Também o peso do ouro no total das reservas estrangeiras do Banco de Portugal ronda os 90% (na Índia este indicador mal passa dos 10%).
3) Em caso de decisão de venda de Reservas de Ouro, a última palavra é do Banco Central (Banco de Portugal) e nunca do Governo - Artigo 7º do Protocolo do Sistema Europeu de Bancos Centrais, que garante a independência dos bancos centrais do poder político.

Posto isto, porque é que não se alienam algumas das Reservas de Ouro para baixar a Dívida ou adiar a emissão de nova Dívida Pública?
1) Simplesmente porque não é possivel. Segundo o "«Acordo dos Bancos Centrais sobre o Ouro» assinado pelo Banco Central Europeu e por 14 Bancos Centrais Nacionais, entre os quais o Banco de Portugal, em Setembro de 1999. Este acordo, que tem sido renovado a cada cinco anos, define que «as vendas de ouro serão realizadas através de um programa concertado de vendas ao longo de cinco anos. As vendas anuais não poderão exceder cerca de 400 toneladas e as vendas totais ao longo deste período não poderão exceder as 2.000 toneladas»". As Reservas do Banco de Portugal ascendem a 382,54 toneladas (2006, desde então não se tem verificado nenhuma alienação relevante, apenas para cunhagem de moeda), além de que também Chipre, Grécia e Itália especulam acerca desta solução.
[Então e se pudesse?]
2) Porque é irrelevante a capacidade das Reservas baixarem o volume de dívida. Neste momento, ter a dívida a 117% ou a 107% do PIB é basicamente a mesma coisa. Como disse João César das Neves "se vendermos, ficamos sem ouro". Então e depois de vender o ouro, cunhamos moeda com o quê?
3) Porque uma venda desta dimensão teria um enorme impacto sobre o valor do ouro, que cairia a pique. Isto resultaria num valor conseguido pelo Banco de Portugal bastante inferior ao valor estimado de 16.7 mil milhões de euros, porque o ouro não seria vendido todo ao mesmo preço.
4) Porque para vender o ouro, o Banco de Portugal iria receber Euros, o que iria ter um impacto sobre a cotação do Euro nos mercados de câmbios e exercer pressões para a inflação dos preços, o que vai contra a missão de "estabilização de preços" do Banco Central Europeu.

No entanto, parece existir outra forma de utilizar estas Reservas na emissão de Dívida Pública. Segundo uma ideia antiga de Romano Prodi (ex-Presidente da Comissão Europeia), as Reservas de Ouro poderiam ser utilizadas como colateral para a Dívida, baixando os juros associados. Para os mais leigos na matéria um colateral é uma garantia física que se dá ao credor (mas consultem o link da investopedia). Mas pode perguntar-se: Então mas usando o ouro como colateral não vamos ficar sem ele? A resposta é: se tudo correr bem, não, o ouro continuará nos cofres do Banco de Portugal. As coisas funcionariam como no caso de uma Hipoteca: se o devedor tiver tudo controlado (se não tiver "mais olhos que barriga"), consegue pagar o empréstimo e "ganha o bónus" de pagar menos juros durante o processo, beneficiando da Hipoteca. Caso contrário, fica sem o dinheiro e sem o colateral.
Sinceramente, e a priori, a ideia não parece de todo descabida, mas voltamos a enfrentar o problema institucional: o ouro é propriedade do Banco de Portugal e quem emite a Dívida é o Instituto de Gestão do Crédito Público (IGCP), portanto seria necessário à partida um acordo que poderia colocar em causa a independência do Banco de Portugal face ao poder político (outra vez o  Artigo 7º do Protocolo do Sistema Europeu de Bancos Centrais).