O que ensina o latim...

"Quod non est in actis, non est in mundo" ("O que não está escrito, não existe")

quarta-feira, 20 de março de 2013

A reputação é um boneco


O ministro Gaspar foi apresentado à Nação como mente bem pensante, competente e respeitada entre pares nas instituições internacionais e famintos “mercados”.

Tomou posse em Junho de 2011. Ainda nesse ano, confrontado com um tal “desvio (que exigia um esforço de correcção) colossal” (que afinal não era bem assim…), não teve mais opção senão ir buscar 50% do subsídio de Natal e pegar no fundo de pensões da banca para tapar o défice.
Em 2012, já na posse de toda a ciência sobre o funcionamento da “máquina do Estado” (?), Gaspar e o seu orçamento aumentaram as taxas intermédias do IVA na restauração, entre outros, carregaram forte e feio no preço dos títulos de transporte, e congelaram pensões (o que já deixou de ser notícia). Nesse mesmo ano, a corte governante, quanto aos subsídios, em vez de os mandar às metades para funcionários públicos, afinal não houve nada para ninguém. Entalado pelo Tribunal Constitucional, foi obrigado a devolvê-los (ainda que em parte) neste 2013. 
O novo ano trouxe um aumento “enorme” nos impostos (anunciado pelo próprio com grande dose de  pompa e sadomasoquismo), principalmente no IRS (onde coube ainda um imposto extraordinário de 4%), mas também no IMI. Entre bricolage com os reformados, talhou um dos subsídios de férias/Natal, atenuado pela devolução parcial dos do ano anterior decretada pelo TC. (ver mais e mais)

No meio de tanto entusiasmo por impostos e cortes de despesa, o ministro não acertou uma única estimativa prevista. Aliás, quem se der ao trabalho de pesquisar sobre revisões das estimativas do governo, vai encontrá-las aos montes (nalguns casos o MF reviu previsões sobre estimativas feitas um mês antes…)

Segue-se o quadro das certezas ministeriais.

2011(a)
2012
2013

Prev
Exec
Dif
Prev
Exec
Dif
Prev
Prev(d)
Dif
Défice
4,60%
8,00%(b)
3,40%
4,50%
6,60%
2,10%
4,50%
5,50%
1,00%
Dívida
86,60%
107,80%(c)
21,20%
113,10%
120,50%
7,40%
122,00%
123,70%
1,70%
Crescimento
0,20%
-1,60%
-1,80%
-2,80%
-3,20%
-0,40%
-1,00%
-2,30%
-1,30%
Desemprego
10,80%
11,80%
1,00%
13,40%
16,40%
3,00%
16,40%
18,20%
1,80%
Fonte: OE dos sucessivos anos. Legenda: (a) OE elaborado pelo governo Sócrates, executado em parte pelo governo actual, (b) não considerada a receita de 6.000 M€ com fundo de pensões da banca, (c) pedido de assistência financeira à troika, (d) correcções depois do 7º exame regular da troika, Março 2013

É particularmente escandaloso o diferencial entre estimativas para o défice público, a mais “controlável” das variáveis apresentadas, visto resultar da gestão das Administrações Públicas (sob orientações do MF). E nem na dívida pública (variável relativamente previsível), o ministro tem acertado. Conclui-se que as execuções orçamentais partem de bases macroeconómicas erradas, o que depois afecta expectativas de receitas (impostos) e despesa (subsídios de desemprego, por eg.) alterando sucessivamente as metas do défice estipuladas. (mais erros)

Sendo a competência (bem patente acima), um dos grandes atributos que mantêm Gaspar como ministro, facilmente concluímos que de exigente com os seus ministros Passos Coelho tem muito pouco.
Outro dos eventuais motivos que levam Passos a manter Gaspar é o de este encarnar o corpo ideológico que o PM defende (?). Supostamente liberais. Surge-me então uma pergunta: qual é o governo liberal, "superliberal", “neoliberal”, “ultraliberal” ou lá que liberal seja, que, não só aceita, como agrava a carga fiscal, a pontos de a fixar à beira dos 40%?

O seu estilo é singular. Anuncia medidas penosas com a maior parcimónia deste mundo, nunca se irrita e demora três vezes mais tempo a falar do que qualquer outra pessoa (esgota os outros pela calma). Respeita os demais no trato e aparentemente responde a todas as perguntas que lhe colocam. Contudo, não é tanto assim – aprendeu depressa a arte (com ele mais refinada) de fugir às questões (eg. de resposta: “essa pergunta tem toda a pertinência mas neste momento não estou na posse de todos os dados para lhe responder”).

Para não falar da questão constitucional. Gaspar arrisca-se seriamente a ser o primeiro MF da história a ver o seu orçamento (parte dele) chumbado duas vezes pelo TC. Algo que demonstra um desrespeito “olímpico” pela ordem jurídica estabelecida, inaceitável no regime em que vivemos. Se isso acontecer, tem de se demitir ou ser afastado.
O pretexto último para o manter como ministro é o de gozar de reputação além-fronteiras. Sinceramente não cabe em mim uma explicação para tal facto, já que quem olhe para um quadro como o de cima não acredita estarmos perante alguém que mereça grande crédito da parte de gente inteligente (onde andam as expectativas racionais dos "mercados"?). Nada melhor que um artifício para contrapor a factos objectivos.
E como escrevem n’O Jumento, Gaspar faz de Passos “uma marioneta ridícula”, pois na realidade “é o verdadeiro número um” deste governo. Perigoso, portanto.

Estamos pois perante alguém que vive no mundo hermético dos números, que não conhece a realidade cá fora/da vida e que, pior que as anteriores, não sabe como resolver problemas (agravando-os). Haja então alguém que tire disto as ilações necessárias, sob pena de o país deitar fora todo o esforço feito e ficar apenas com a reputação dum boneco.

“Se um chimpanzé fosse ministro das Finanças, talvez a dívida aumentasse, o desemprego subisse e a recessão se agravasse. Ou seja, ninguém notava.”
(Ricardo Araújo Pereira, in Visão - artigo delicioso)